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Leitura


Estou quase no fim. A última página se aproxima como uma tragédia anunciada que logo invém. Quando terminá-la perderei a humanidade que sou na tua presença e essa ausência me dói antes mesmo que se realize.

Sou uma pessoa que ama prefácios e páginas surpresas de livros que nunca termino. Tenho sido escrava de meus prazeres, sigo até o lugar onde o amor alcança o ápice e lá permaneço, sobrevoando minha felicidade sem ponto final, nem reticências.

Quando terminar, serei mais órfã que antes de o ter lido porque saberei o gosto amargo ou doce de tuas palavras (antes desconhecidas). E ninguém sente saudades do que nunca teve. Na caixa do nada, nada falta, porque nada existe, ou exige.

O nada confortavelmente nos abraça, como a ignorância fofa dos bebês na infância.  Quando terminar, não seremos mais inocentes. Outra coisa advém, o eu que antecipa o fim de cada página, o eu do livro fechado e solitário na estante.

E tudo que sou agora, sou pela relação que ainda o temos. Cada capítulo me domina e me liberta. Atravesso portas que se tornam pequenas demais para voltar, e sou mais daquilo que me toca a alma e me alimenta.

Érica Alcântara

12/04/2022

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Entrou no velório ainda tonto, com os olhos cheios d'água, o mesmo terno preto cheirando a flores e o lenço sempre a mão, tapando a boca que cheirava a pinga. Todas as vezes que João bebia, acabava velando alguém, chorando a morte dos outros, chorando a partida alheia como se fosse a sua.  - Você é parente?  - Não, eu só vim dizer... Até logo.  - Você sempre fala com os mortos?  - Quem é você?  - Eurico Breve, seu criado.  - Desculpe, eu não faço criado.  - O senhor não entendeu, só quero lhe prestar pêsames, vejo que estás muito triste. Já sei, era o amor de sua vida.  - Que vida?  - Entendo, o senhor quer ficar sozinho. De todo modo, lamento sua perda, tenha fé que Deus conforte o coração de toda sua família.  - De que família o senhor fala? João que não amava ninguém olhou para o rosto pálido e duro deitado à sua frente e todas aquelas flores cheirando a capim, sorriu e saiu. Pensava no senhor Breve que tagarelava muito e no rosto sem nome, envolto de flores que de certo  murcha