Tutu de Feijão
"A solução improvisada para um conflito que existia dentro dela, uma bandeira de paz."
Moro há um ano e meio em Portugal e ontem foi o primeiro dia que fiz tutu. Sabes o que é tutu? Tritura o feijão cozido com um pouco de farinha de mandioca e deixa-o engrossar um bocadinho. Vai transformar-se num creme. Depois, preparas uma linguiça (aqui chamam-na de salsicha fresca) com uma boa quantidade de cebola e despejas tudo por cima do creme.
O prato é muuuuuito simples, muuuuuito barato e delicioso!
Mas o paladar tem particularidades que não se encontram apenas na boca. O que se quer nem é o feijão, a farinha ou as salsichas... é conforto.
Uma lembrança que nos embale com carinho quando o chão parece rachado, como se a qualquer momento a terra, por puro capricho do seu próprio paladar, nos fosse engolir inteiros
A minha tia Olga fazia o melhor frango com molho pardo do mundo. Quando ela morreu, nunca mais comi algo que se aproximasse do que só ela sabia fazer. E vê, o sangue que é o elemento principal da receita, se não houver confiança nas mãos de quem prepara o prato, transforma-se em veneno na boca e indigestão na barriga.
Fato é que ela sempre preparava esse frango quando eu voltava para Minas. E aquele era um gesto de carinho, que me dava um enorme prazer! Sentávamos à mesa e partilhávamos histórias, algumas viraram memórias de um tempo feliz.
A minha mãe começou a resmungar, fazia cenas de ciúmes por causa dessa relação entre mim, a tia e o frango com molho pardo... então um dia, escolhi meticulosamente pedir que ela preparasse para mim um tutu. "Porque é o melhor do mundo", disse-lhe.
Sinceramente? Tal como eu, a minha mãe não tem a menor vocação para a cozinha e o tutu era algo tão simples que na minha cabeça era absolutamente impossível falhar.
E foi assim que, durante anos, quando voltava para casa dela, a minha mãe fazia tutu.
Às vezes a farinha empelotava!! Mas quem é que se importa?! O tutu estabeleceu entre nós um ritual, com gosto de festa de chegada. Com gosto de casa.
A minha mãe, até eu escrever esta confissão, nunca soube que o tutu era uma saída. Que o tutu era a solução improvisada para um conflito que existia dentro dela. Era uma bandeira de paz.
Ontem comi de olhos fechados, sentindo o gosto do lar, o cheiro das coisas boas que já vivemos e isso, bem... isso foi maravilhoso!
Érica Alcântara
jun/2024
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