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Carta para Minduim

Autocarro das 10h14, linha Praia de Santa Cruz rumo a Torres Vedras.

Minduim,

É sempre assim: sento-me a ver a estrada e logo penso em escrever para ti. E, porque você nunca morre e nem quero matar-te em mim... sigo escrevendo.

Esta manhã, apareceu-me assim, sem qualquer aviso, Um sopro de vida, o último livro que partilhamos da Clarice!

Tu sabes que pastos com aragens frescas podem, eventualmente, ser tomados de estrelas.

Às vezes, olho para o céu e te chamo. Tu vês-me daí? Ainda podes ouvir-me?

Olha que trecho que deitou-se ao meu colo é daqueles de boas conversas, looongas conversas:

"Deus é uma coisa que se respira. Eu não tenho fé em Deus. A sorte é às vezes não ter fé. Pois assim, um dia, poderá ter A Grande Surpresa dos que não esperam milagres. Parece, aliás, que milagres acontecem como maná do céu, sobretudo para quem em nada crê. E essas pessoas nem notam que foram privilegiadas. Cansei de pedir. Para que o milagre aconteça, é preciso não esperá-lo."

Estou mandando-te este trecho... internamente, já antevendo a tua resposta... abrindo-me caminhos para a outra face de Deus.

E por aí? Já encontraste o pobre menino? Ele ainda dorme na manjedoura?

Eu, por aqui, tenho dormido pouco e escrito menos do que queria. No azulejo da cozinha, ainda guardo os números 2.500. Meta que estabelecemos juntos para eu, enfim, tornar-me escritora.

Talvez eu seja só a borracha. Mole, mole, saindo da casca. Para ser grande, tenho em mim uma imagem mais rija. Então, fico bem pequenina, não chego a ser ponto nem vírgula.

E creio em Deus por pura teimosia. Você sabe, a qualquer momento... distraída, tropeço numa imagem divina: Deus dividido em muito mais do que três, espalhado na revoada de gaivotas matutinas. Um Deus que fala em silêncio, derramando-se nas entrelinhas.

Você ainda reza? Ou flutua por aí, a entrevistar os anjos e santos com cadernos azuis de páginas feitas de vento?

Por aqui, voltei a rezar todas as manhãs em que estou sozinha. E leio sermões antigos que despertam dúvidas contemporâneas. Às vezes penso que o meu tempo não cabe nesta língua. Sabes bem como sou: os olhos voltados para o sol e os ouvidos atentos às sombras — que murmuram mais alto quando fico só.

Vejo-te sempre a dar-me a mão para atravessar as palavras que desconheço.

O teu conselho ressoa sempre como o grande final da minha prece: "Vai lá, menina!" Nem por isso a jornada é mais leve, mas como é seguro caminhar contigo, em pensamento! A dúvida alimentando as certezas, as certezas criando mais dúvidas, e a gente não pára nunca...

O autocarro aproxima-se da paragem. Deixo-te até à próxima viagem...

Sinto a tua falta. É isso.

Santa Cruz, foto de nosso arquivo de conversas


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