por Érica Alcântara
Há anos decidi que não veria mais os mortos. A primeira vez
foi em 2004, quando em Ouro Preto, soube do falecimento de Ivan Marquetti.
Auto-Retrato, 1963, Ivan Marquetti Foto de autoria desconhecida |
Ivan era artista plástico, daqueles que pintavam o mundo à sua própria maneira e que, pouco tempo antes de morrer, decidiu libertar a própria filha dos muros fechados de um manicômio. E foi aí que nós nos conhecemos, um amigo em comum me recomendou para o trabalho de acompanhante terapêutica.
Confesso que não sabia absolutamente nada sobre
esquizofrenia e até hoje tenho dificuldade de pautar como esta experiência me
amadureceu. Por aproximadamente um ano Emiliana me ensinou a controlar minhas
emoções para ser, quando a realidade desmorona, um porto seguro na escuridão.
Depois que sua filha foi completamente reintegrada na
sociedade, Ivan Marquetti morreu. Seu corpo foi velado na Fundação de Arte de
Ouro Preto e Emiliana estava na porta quando cheguei.
- Meus pêsames querida, disse eu.
- A vida é isso Érica, um dia chegamos, um dia partimos. É a
natureza, disse Emiliana.
Havia tanta serenidade nela que a realidade caiu aos meus
pés com uma centena de lembranças dos momentos em que ela demonstrou ter mais lucidez
que eu que vivia na filosofia.
Eu não fui até a beira do caixão, da janela eu disse adeus:
- Adeus Ivan, vá com Deus, disse bem baixinho e fui embora.
A vida é isso: uma chegada, uma partida e no meio de tudo
isso temos as memórias que, de algum modo, nos eterniza. Por isso eu te
pergunto, que memórias você compartilha?
No caminho de casa me lembrei de tantas vezes que sentamos à
mesa para ele contar sobre suas viagens, suas paisagens pintadas com espátulas
carregadas de cores vivas e o cheiro forte do cigarro sempre aceso no cavalete.
E a última lembrança que tenho dele é essa, o quadro no meio
da sala, tons de vermelho sobressaindo na tela e um adeus com gosto de
gratidão. Aprecio a memória viva do que a pessoa era antes de deixar esse
mundo.
Na última terça-feira eu corri numa rodovia para registrar
imagens de um acidente, quando me aproximei vi no acostamento algo que parecia
humano, mas já nos confundia a vista, como se ao partir deste mundo todos nós
perdêssemos a forma e a essência.
Então eu parei, me posicionei de tal modo que pudesse apenas
alertar as pessoas sobre o ocorrido, mas eu mantive a distância - aquela
distância que nos permite respeitar a dor de um pai, a tristeza de uma mãe, o
desalento de um filho e a perda irreparável de um amigo.
Ainda hoje eu oro pela família daquele homem que morreu e, ciente
de minha imperfeição, peço a Deus a sabedoria de orar também por aqueles que compartilharam
imagens tão difíceis... pois abraçados as suas próprias misérias, queimaram com
a indiferença uma parte da memória viva de quem ele foi.
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