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Das vidas vividas


Estamos nos afogando em nós mesmos, mergulhados por obrigação em nossos próprios corpos ...

Até então éramos todos o mundo de fora, expandíamos para além das fronteiras do eu experimentando o outro e, a partir do outro, estabelecíamos padrões de referência: os limites pensáveis e intuídos de até onde queremos ir, o que aceitamos como certo e errado.

 

Estamos agora encarcerados, o medo do outro lado da rua, do último abraço.

 

O medo do outro só por ser outro e por não estar desde sempre sob nosso controle. Nós que temos perdido os limites das palavras e distribuído mentiras e maledicências como doces em festas de São Cosme e Damião. Mas eu nunca fui a estas festas e meus bolsos nunca se encheram de doces...

 


Me lembro da queima de Judas, em Ouro Preto, uma réplica do apóstolo é queimada em praça pública e o evento é tido como infantil. Os adultos jogam balas e chocolates para o alto e as crianças se jogam no chão, empurrando violentamente umas contra as outras sobre os paralelepípedos da cidade histórica.

 

Eu não era como as outras, eu não queria me jogar no chão por balas pisoteadas da alegria de queimar Judas.

 

Para mim, o boneco representava uma pessoa e uma pessoa não merece o fogo, nem as pauladas com risos.

 

Para mim, tudo aquilo era atrocidade, ainda que eu não soubesse o que atrocidade significava. E eu sempre saía do ritual anestesiada, com os adultos me cutucando e perguntando por que eu não peguei algumas balas?

 

Talvez uma parte de nós viva sempre encarcerada. Por que apesar do que sentia, eu nunca levantei a voz contra aqueles que queimavam Judas em praça pública, e a sua morte, ainda que simbólica, de certo modo também me deprimia.

 

Há palavras que precisam ser ditas, mas guardamos tão fundo, tão fundo... que elas se perdem de nós mesmos. Estão espalhadas em nosso sangue, subdivididas em nossas células e gravadas em cada átomo rodopiante.

 

E agora, nos deparamos com uma casa que, sem que nós percebêssemos, nunca esteve arrumada.

 

Gavetas reviradas de emoções, prateleiras empoeiradas de lembranças e ainda tem esse pó do passado que nunca aspiramos...

 

A cama dos desejos encobertos nos afronta e não estamos certos se temos maturidade suficiente para sermos, ainda que tardiamente, mais humanos.

E se pudéssemos...

Eu desataria os nós do Judas na praça, cobriria o seu corpo com meu próprio dorso e diria aos algozes cheios de riso: queimem vocês... cada um, sozinhos, as suas próprias culpas.

Érica Alcântara

10/09/2020

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