Pular para o conteúdo principal

Figa



Ele chegou na cozinha e puxou assunto contando de um debate em família. Debates em grupos de família pelo WhatsApp.
Eu havia acabado de voltar de viagem. Este ano foi o ano que mais fui para casa. Quando soube que minha tia/irmã havia adoecido, eu quis ficar perto, o máximo que podia ficar.

Ele desbloqueou o celular e começou a ler o debate. Eu fiquei ali, parada. A primeira coisa que pensei foi na disputa inteligente para ver quem estava certo, uma necessidade de ser mais poderoso, de argumento. E em outro tempo talvez eu tivesse comentado algo para apimentar a discussão, mas aquilo tudo parecia sem sentido. Eu vi o medo da morte de perto, então, estar certo, ou não, parecia a coisa mais tonta do mundo.

Comecei a pensar na família como grupos de sangue, muitas vezes, de pouca ou nenhuma intimidade. Eu também passei por isso, essa necessidade de estar certo, ou ter o argumento mais forte. Mas a morte muda tudo, ou nos aproxima de vez, ou nos afasta para sempre.
Percebi que passei tanto tempo querendo estar certa, que minha família conhece muito pouco de mim. E por isso, debates assim hoje me parecem tão pequenos. A morte nos arranca as miudezas, essas vaidades infantis que não revelam nada de nós mesmos. Passei a falar mais sobre o que faço, como faço e como me sinto e foi aí que minha tia/irmã, pela primeira vez em mais de 10 anos, me perguntou se eu não me sentia só por viver tão distante.
A intimidade é algo que exige contar detalhes. Sabe os pequenos detalhes? Sentada à mesa, ouvia o debate da família alheia e pensava em contar um pouco sobre o Bruno, o maior amor de minha vida.
Por 14 anos vivi ao lado dele e não houve um dia em que Bruno não falasse um pouco sobre um certo ceticismo que tem diante das pessoas e seus conflitos. Além dos meus irmãos, é a única pessoa que me conhece por inteiro. Intimidade. Apesar de aparentemente bruto, Bruno é emotivo, um poeta amarrotado! Sim, amarrotado, porque apesar de ter o dom para as letras e rimas, ele prefere a filosofia.  

Todas as noites, quando começa a sentir sono, Bruno dobra os dedos e faz figa. Acho que tem uma crença de infância, não me lembro bem e ele sabe que minha memória é essa coisa repartida. Não importa o lugar, a posição, sofá ou colchão. Detalhes. Passei mais de dez anos achando incrível estar ao lado de um homem que dorme todas as noites com a sorte.

Érica Alcântara
14/10/2018

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

 Até você vir  O vento era tudo Que ia, que vinha  Até você vir O tempo passava Eu o sentia, lânguido Agora tudo é brisa O tempo desliza Suaves rompantes Coram-me a face Cartas ridículas Cartas eróticas Seu corpo pálido Minha pele morena Seu corpo nu Minha alma despida Érica Alcântara

Isabelense é inocentado após 17 meses de prisão

“A esperança de voltar para minha família me manteve vivo”, disse David João Nunes Inácio por Érica Alcântara David João Nunes Inácio fez questão de começar a sua entrevista na quarta-feira, 23/10, dizendo: “Eu sou isabelense, nasci aqui, trabalhava aqui e não quero deixar esta cidade”. Em abril de 2018 ele foi preso, acusado de participar de um crime que, em dezembro de 2015, ceifou a vida da professora Maria Helena de Oliveira Godoi, assassinada na cidade de Redenção/Pará. Após 541 dias preso, o Juiz de Direito do Pará, em auxílio à Vara Criminal de Redenção, Dr. José Torquato Araújo de Alencar absolveu David de todas as acusações em face da falta de provas. “Não guardo revolta, só a vontade de voltar para minha vida”, diz. O Processo No dia 24/04/2018, David foi preso quando saía do trabalho na Secretaria de Serviços Municipais. Ele ficou preso alguns meses em São Paulo, depois foi transferido para o Pará onde ficou sete meses sem ver a esposa, Luciene Cristina

O peixe morre pela boca e nós também

Por Érica Alcântara Agora que a pandemia amenizou estamos mais à mostra, presencialmente à mostra. E que mensagem estamos transmitindo? Que código silenciosa meu corpo passa quando, sem nenhuma palavra, caminho na direção de um estranho. A porta da escola voltou a formar fila de espera para entrar. Por aqui os uniformes são vermelhos da cor do tomate, beeeem vermelhinho e, observando melhor, a maioria das crianças tem mesmo um formato de tomate do tipo caqui. Bem redondinho. Quando eu era criança ser gordinho era sinônimo de saúde, é como se a criança gordinha simbolizasse uma casa repleta de fartura. As crianças magras eram obrigadas a tomar tônicos e aqueles elixires “de crescimento”, tudo para abrir o apetite que, para muitos depois de abrir, nunca mais fecharam... Mas aí, chega um dia em que ser gordinho deixa de ser símbolo da saúde e passa a ser motivo de escárnio, chacota para os estranhos e, muitas vezes, para os parentes mais inconvenientes. Reportagem R7: https://bity