Preta sim, mulata jamais
-Eu não tinha um grupo na escola, os brancos não me aceitavam porque eu era negra. E os negros não me reconheciam porque eu não era pobre o suficiente.
Quando Tainã Sandis me contou essa história pela primeira vez estava sentada na rede, na varanda de casa. Nunca esqueci desta frase, era tarde de primavera, ano 2017. Ela chegou com um bonsai de presente e umas sacolas cheias de comidinhas e bebidas.
Parecia uma festa! Chegou provendo o encontro como se fosse a própria anfitriã e gostei muito disso. Abre a geladeira que as portas de minha casa só são abertas para minha irmandade. Tomamos caipirinha de maracujá com pimenta, servidas cuidadosamente na casca, porque Tainã tem muita personalidade.
Quando a conheci disseram-me que é racional, mas só se for na página 54, hoje não, ainda não. Em seus 29 anos é aquela pessoa da qual se pode contar, sabe? Contar mesmo! Do tipo que vira o mundo para fazer as pessoas que gosta feliz.
Ela nunca expressou pesar para contar as histórias da escola. Quando lembra da educação que teve, lembra mais da mãe Sumaia e do pai Carlos, dois trabalhadores, daqueles que viravam turno ou acumulavam serviços para dar aos filhos o que possivelmente ninguém os deu.
Tudo é trabalho e merecimento e apesar da ausência, resultado de tanto trabalho, nenhum dos pais abdicou-se do dever de ensinar.
Mãe forte, pai coração. Há tanto deles em Tainã que ao conhecê-la é como se fossemos apresentados para ambos, o pacote completo. E seria natural dizer olá para três, mesmo quando se está na presença de um!
Em pouco tempo a gente aprende que a melhor lasanha do mundo é feita por Sumaia, que mistura entre os recheios, uma porção de molho branco e vermelho e o tabuleiro de massa é sempre cobiçado pela meninada que se reúne na casa aos domingos.
- Geladeira cheia, mochila nova. Acho que incomodava alguns colegas o fato de que todo ano eu trocava de mochila, e muita gente não entendia como uma garota do Capão Redondo tinha tanto, no meio de tantos que tinham tão pouco.
Ninguém sabia da casa vazia quando o pai ainda tinha ônibus, trem e sei lá mais o que de transporte público para pegar antes de chegar em casa. Ninguém sabia da mãe enfermeira cuidando das feridas do mundo...
Saí dessa tarde com um orgulho danado de uma família que não conheço, mas já conheci!!!
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A segunda vez que Tainã falou da escola o cenário era outro. Outono de 2018. Estávamos as duas na cozinha do apartamento que é dela. Sim, aos 29 anos Tainã vendeu o carro, ganhou uma bike e a ajuda dos pais para ter casa própria.
- Agora tenho 30 anos para pagar!, brinca, acrescentando: ao menos tenho a certeza de que estou pagando pelo que é meu.
Suspeito que é dessas decisões racionais que vem sua fama de ser muito mais cérebro que coração. ❤
- Ai essa coragem, de onde vem tudo isso?
Mãe negra, pai negro, filha forte. Falávamos novamente da escola e as etnias, das políticas "politicamente corretas" de como as pessoas se autointitulam branco, pardo, negro ou amarelo.
- Li um artigo outro dia que debate a cor da pele, defende que só existem duas cores branco ou negro. Então sou negra, eu que fui a vida toda tão parda kkk, disse.
- Também acho, ela respondeu.
- Nunca gostei de como as pessoas se referem ao outro, olha lá aquela pessoa moreninha. Uai! Se a pessoa é negra por que chamá-la de morena e não de mulata?, questionei.
Tainã largou a colher na panela em que preparava a carne do almoço e séria me advertiu:
- Nunca diga isso. Diga negra ou preta. Mulata jamais. Historicamente as mulheres negras eram chamadas de mulatas por serem comparadas às mulas.
Atônita disse: - Como não sabia disso? Porquê?
Falamos sobre o poder da palavra. De lá para cá, nunca mais me referi a uma mulher como: mulata brasileira. Nunca mais.
Sai do segundo almoço com outra declaração pessoal de minha etnia e uma lição de história 😊 Amigos mudam a gente por dentro, que bom!, conclui.
Érica Alcântara
19/06/2018
Eu sou Sumaia negra e criei minha filha negra que amo muito.
ResponderExcluirMaravilhoso. Como tia sa Taina e cliente das melhores lasanhas e tudo que Sumaia cozinha, vi a vida desta família maravilhosa fielmente descrita. No próximo encontro, pergunte pra ela se ela come " carne de segunda ", ela entenderá.
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