Laços de Família
Mamãe Luzia e Vovô Wilmar Pedro de Alcântara, meu padrinho.
Quando meu avô morreu havia muito pouca idade no meu
calendário de vida, 3 ou 4 no máximo.
Partiu como quem reparte a história de toda a família.
Nunca mais a meninada se reuniu no quintal para chupar cana,
ou se matou de rir com o reco-reco do vovô (uma brincadeira em que ele usava
nossas costelas como cordas de violão e eu sentia muita dor, mas ainda assim eu
ria).
Lembro de suas mãos duras, com dedos de madeira bruta,
rústica e áspera.
Era pedreiro e marceneiro, nascido no Salto, interior de
Ouro Preto/MG.
No dia que meu avô morreu, horas antes o sol castigava. Peão
come cedo, nem era 12h ele vinha. Entrava na casa como quem carregava o
remanso, de uma mansidão típica do homem do campo. Em todas as minhas
lembranças, é ele quem traz o sol.
Aliás, a casa era em tons de amarelo, o fogão a lenha
tilintava as lascas de eucalipto em brasa quando ele pedia arroz. O vô amava
comer arroz, desse branquim, que garra só um cadim no fundo e deixa uns grãos
crocantes na panela.
Ele fartou-se da comida mineira, do café ralo que a vó fazia
para as crianças, comeu mas não foi se deitar.
Logo depois voltou para a lida, vida, viga... O som seco da
queda, do telhado à caixa de pregos no chão cinza chumbo de pedra.
Quando me disseram que ele caiu do telhado, pensei: caiu
nada. Meu padrinho é gigante e gigantes não caem assim.
Depois ouvi os choros, os gritos, a dor retorcida da perda.
Se eu soubesse que era a última refeição ao seu lado, teria
lhe oferecido as costelas para um último reco-reco.
Levaram todos os menores para um quarto, o do meio da sala,
com vista para o beco.
Depois vieram as gentes, para a despedida do que já se foi.
Não me lembro se velaram em casa e agradeço por não lembrar. Prefiro as
recordações vivas, as que tenho por ter vivido, ou imaginado.
Quando vovô partiu, mamãe chorou feito criança. Nunca antes
soubera, o quanto minha mãe também foi filha, que também era frágil, que também
era só uma menina.
Ela chorou tua ausência por semanas, depois em intervalos de
dias, semanas, meses e anos. Em muitas ocasiões vi o choro de perto, outras
ouvi de longe, em forma de gemido contido, seguido de murmúrios, diálogos com a
memória, ou com Deus.
A morte abalou nossas crenças, anos sem missa, culto, reza
ou romaria. Deus foi expulso? Ela nunca contou. Manteve distância até que mais
tarde fez as pazes, (de dedos mindinhos cruzados porque vale mais, gostava de
imaginar isso! Mamãe e Jesus balançando os braços seguros apenas pelo
mindinho!). Ela nunca contou como fez as pazes.
Viajou, morou fora e depois voltou. 2018 e mamãe Luzia vai
fazer 70 anos. Mora até hoje na casa que vovô construiu. Cuidou de vovó Maria
das Mercês até o fim, depois ajudou tia Olga a fazer a travessia, meninas de
Wilmar que subiram aos céus para lhe fazer companhia.
Mamãe é restauradora, cercou os quatro cantos da casa com
anjos que ela mesma criou e vive de restaurar obras sacras e sagrados laços de
família!
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Quando terminei de escrever estas memórias, mandei para mamãe ler.
Ela deitou na cama e me contou o que aconteceu, as memórias que são dela.
"No dia que papai caiu do telhado a gente nem estava em Ouro Preto. Era época difícil da economia e no Brasil havia alguma coisa como racionamento de combustível e seu pai saiu para arrumar gasolina.
Quando mamãe ligou ela só tinha dito: 'Seu pai caiu do telhado e agora está só por Deus'.
Mas foi um susto danado. Quando chegamos na casa de papai eu não sabia de nada, como é que ele estava ou qualquer coisa deste tipo.
Nós paramos o carro na rua de frente e chegamos todos pelo portão principal, ao mesmo tempo, o caixão entrava pela porta dos fundos e nos encontramos na sala.
Eu não sabia que ele tinha morrido e foi ali que eu cai. Deram-me qualquer coisa que não me lembro, medicamento ou qualquer coisa deste tipo, o velório passou e faltei ao enterro".
Silêncio na ligação.
- Mas e o arroz? Ele gostava mesmo de arroz?
- Gostava e muito! Isso você acertou!
(risos) Comemoramos juntas essa lembrança comum e não falamos mais disso.
por Érica Alcântara, 12/03/2018
Uau, agora eu só queria um pouco de arroz e ler mais histórias como essa 💗
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