Meu primeiro beijo foi com um padre.
Eu devia ter uns nove ou dez anos, e como morávamos perto da
matriz, minha mãe fazia questão de nos levar a missa todos os sábados ou
domingos. Embora eu achasse o ritual maçante, a teatralidade das igrejas
barrocas provoca o imaginário das crianças, então eu passava uma hora cerrando
os olhos para ver se os anjos se mexiam, se as imagens do teto ou das paredes
piscavam ou se o padre cairia enroscado em sua própria saia.
Um pároco diferente, pelo menos uma vez por mês, ia até a
matriz rezar a missa das crianças, chamavam-no de Frei Letro. Dono de oratória
rebuscada, ele floreava as palavras e nos dava acesso à oração, como quem
estendesse as mãos e fizesse o elo entre Deus e os pequenos.
Ao final de cada cerimônia, Frei Letro reunia as crianças na
sala atrás do altar e distribuía doces, lembrancinhas e beijos em todas as
crianças que o cercavam.
Um dia ele me convidou para ir até a casa paroquial; como a
vida toda fui alucinada por doces e encantada pelo vovô sabe tudo, fui com meu
irmão mais novo. Enquanto meu irmão olhava medalhinhas e imagens dispostas
sobre a mesa de centro da sala, Frei Letro me chamou no sofá: - Você quer se
sentar aqui? Vem aqui, senta no meu colo, vem.
Para uma criança que cresceu com a ausência da figura
paterna, um colo sacerdotal não me assustou nem um pouco e ainda me deu a
impressão de que, entre todas as crianças que viviam cercando o Frei, eu era a
favorita, a melhor.
- Sabia que se tirar o assento de seu nome você fica rica? Você
é muito bonita, deixa eu te dar um beijo.
E mais uma vez, a degradação. Eu fechei os olhos, cerrei os
dentes e prendi a respiração. O tempo estacionou por alguns segundos, enquanto o
medo percorria meu corpo, misturado a uma espécie de asco tanto dele e quanto de
mim.
Quando ele se afastou pela segunda vez meu irmão nos olhava,
eu o empurrei, enquanto ele enchia minhas mãos de presentes como: medalhas,
imagens de santos e cartões postais. Eu não joguei tudo fora tão logo cheguei
em casa, eu guardei tudo, e chorei em silêncio sobre cada medalha, cada imagem,
cada parte de mim que acreditava na bondade dos homens.
Eu levei quatro anos para contar para minha mãe o que tinha
acontecido. Por quatro anos nós discutimos, debatemos e nos estranhamos, por
que eu nunca mais quis ir a uma missa. Por
que eu nunca mais acreditei na fé aprisionada em instituições ou livros.
E quando finalmente, impulsionada pela força da adolescência
eu revelei o ocorrido, tive de responder a pergunta mais triste que já me
fizeram: - O que você fez para provocar o padre assim?
Esta semana a renúncia do Papa virou notícia em todo o
mundo, muitos questionam se a fé católica sobreviverá aos novos tempos, se nem
mesmo o Papa conseguiu arcar com o cargo de maior relevância para esta
instituição. Mas ela já sobreviveu a tantas atrocidades que ela mesma promoveu,
que o simples questionamento baseado na renúncia de um idoso foge a dimensão
dos que se cercam das beneméritas causas que ela manteve viva.
Não estou aqui questionando a fé de ninguém, respeito todas as
crenças, admiro-as.
Disseram-me que Judas traiu Jesus com um beijo, eu também
fui traída com um, mas o meu Deus é tão bom que não tem começo, nem fim. Não
depende dos homens (ou livros) para criá-lo ou interpretá-lo. A minha fé
sobreviveu aos homens.
Texto publicado em janeiro de 2013 no Jornal Ouvidor, edição 909.
Texto publicado em janeiro de 2013 no Jornal Ouvidor, edição 909.
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