Quando o mal vira o bem
Às vezes a gente passa tanto tempo recebendo más notícias que quando uma boa nova bate na nossa porta a gente se assusta e fica cismado. Eu estava lá quando os policiais chegaram na casa daquela família simples de Santa Isabel. Ouvi o choro do filho, que na falta de recursos, acolhe os pais com o que pode e o que ele pode não basta, não aquece o corpo de um homem frente ao frio deste inverno.
Eu estava lá quando os policiais, ao perceberem a situação, ofereceram mais que um apoio vazio. Preocupados com o modo como a imprensa poderia tratar esta família, permaneceram no local até que fossemos embora. Antes disso, realizaram o sonho de um menino de pouco mais de dois anos, deixando-o ver a viatura por dentro. O vestiram com o quepe da PM, dando a todos um novo sentido para chegada da Polícia Militar.
Os homens que aprisionam também são os que libertam. A mãe que até então sentia apenas vergonha da viatura na porta, viu no sorriso do filho o fim de um pesadelo: meses de procura por ajuda que nunca vinha, quando todos à sua volta escutam os gritos, mas ninguém lhe estende a mão. Os velhos na casa gemem de dor. “É a gota, o reumatismo, os AVCs...”, disseram.
Na segunda-feira, uma pessoa ouviu o mais velho. Da maldade que não havia, a denúncia revelou a carência dando-lhe forma, corpo, voz, endereço. No local, o pesar pela fuga da razão, aquela mesma que mantém os nervos no lugar, mas que escapa por entre os dedos quando a saúde se abala e a crise faz da fome a companhia de todas as horas.
Eu perguntei para a mãe, o que eles mais precisavam e ela me disse sem pensar: comida e coberta. Mas até o final daquela manhã nós não havíamos dado nada a eles, nada além do direito de serem ouvidos. Não eram mais um rosto perdido na multidão de anônimos do mundo.
Dias depois deste caso recebi uma mensagem da Nancy, uma sábia amiga de Igaratá que diariamente me escreve, nesta mensagem ela contava de uma menina que morde as duas maças quando a mãe lhe pede uma. A mulher logo imagina que criança mordeu a fruta para não ter que compartilhar. Por outro lado, a menina estende as mãos e diz: toma mamãe, esta aqui é a mais doce.
Às vezes o que pensamos ser a situação mais extrema de nossas vidas, quando imaginamos que perdemos tudo, é quando a nossa vida ganha a oportunidade de se lançar para um novo destino.
Eu vi voluntários se levantarem no anonimato para ajudar, até o cão da família que estava doente ganhou tratamento. O cão parece a Baleia, personagem do livro Vidas Secas, possivelmente há em suas costelas as entrelinhas de um bairro que ainda nos reserva grande surpresas. Aos voluntários, à PM e a família nossa gratidão pelo respeito e confiança de que faríamos o nosso melhor.
Publicado no Jornal Ouvidor, ed. 1132, em 08/07/2017
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