Estende a mão pequenina, pede misericórdia. O choro
engasgado na garganta, a roupa molhada, gelada, resfria o corpo miúdo, depois o
som estrondoso da madeira se partindo, das lembranças em sangria pelo chão do
banheiro.
Uma parte de mim viu o menino cair sobre o piso frio, ser
erguido pelos pés e de ponta cabeça tomar o banho gelado para esconder as
feridas. Foi o relato da mãe expectadora que me colocou na cena, e na noite que
o bebê lutou para sobreviver à mão pesada do padrasto voltei para casa
chorando.
Mas por que chorar por uma criança de dois anos que eu
sequer conheço?
Simplesmente por que alguém tem que fazer isso. Deixar-se
tocar pela informação, de modo que nosso dia-a-dia não se transforme numa
porção de más notícias, que passam por nós sem por isso nos causar nenhuma
reação, indignação. Exerço meu direito de indignar-me contra a violência e não
aceitá-la como parte de minha existência. E não desejo para ninguém essa
espécie de anestesiamento, inércia, que fazem de nós cada vez mais predadores
de nós mesmos, com reações cada vez mais gélidas como o banho que tentou
ocultar as feridas do menino.
Desde então mergulhei em uma série de reflexões, me lembrei
das ideias platônicas de que as crianças devem ser entregues para serem criadas
pelo Estado, com oportunidades iguais até que cada qual mostre os talentos para
ocupar uma classe social.
A primeira vez que li essa ideia fiquei aborrecida, por que
isso seria romper com a instituição primeira – a família. Então, fecho os olhos
e ouço a vizinha chamar seus filhos: “Vem aqui seu filho da puta, desgraçado!
Você é um imprestável mesmo. Aaaa menina, se eu te pego te dou uma surra, sua
gorda...”.
Ligo a TV e outros meninos estão nas manchetes: circulam
pelas ruas armados e como num jogo de vídeo game, estão anestesiados, não
sentem pena, não tem compaixão e pela total ausência de valores se entorpecem
com drogas, matam e ateiam fogo na nossa consciência, levando-me a pensar que
talvez a instituição família tenha mesmo falido e Platão estivesse realmente
certo, numa sociedade em que todas as crianças são retiradas de seus pais, cada
uma é potencialmente um filho ou filha, e por isso são todas mais amadas. Mas
evidentemente, o Estado de Platão é outro.
Nele não há políticos disputando quem conseguirá aumentar a
maioridade penal, por que se nem os adultos são recuperados nesta engrenagem,
que dirá estes adolescentes criados sem valores. Não podemos cobrar que tenham
estes meninos das capas de jornal o que nunca deram a eles, foram criados como
“filhos da puta e imprestáveis”, sem acesso aos direitos como: saúde, educação
e oportunidades iguais, desconhecem seus deveres.
Uma vez perguntei aos meus alunos o que eles entendiam sobre
honra, um dos valores que mais aprecio. Como a maioria deles não conhecia esta
palavra foi necessário explicar, então depois do meu longo discurso me disseram:
“isso é coisa do passado professora, ninguém mais usa isso”.
Talvez este seja o tempo de repensar a família, colar com
honra as partes que se fragmentaram com o tempo. Lá no interior, numa espécie
de milagre o menino bebê sobreviveu às agressões, e tendo a crer que sua
história é símbolo de que há esperança, de que é possível recomeçar apesar das cicatrizes.
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