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O véio


Paulo sem casa, aos 60 anos, chora pelos filhos das divisas.
Deitado em sua cama, estirada sobre o mato, sob o relento
Pede para mim:
"Você que é do jornal, alerta o mundo. Diz que o Brasil é um país sem fronteiras.
Eu vivi em Corumbá, perto da Colômbia, lá as crianças andam com fuzis, os traficantes oferecem as únicas opções de trabalho e as FARCs dominam".
Depois, engole a saliva, esfrega os olhos e entre as escorregadelas da língua, que insiste em lhe dificultar a fala, Paulo diz: "O Lula mandou o exército retomar o país e está expulsando os guerrilheiros da Colômbia, esse homem fez coisas maravilhosas", ergue a mão direita em sinal de vitória e finaliza: "eu voto nele de novo".
Paulo sem casa, mora a tanto tempo na rua, que já não sabe dizer quantos anos faz, reencosta o corpo cansado no solo, mas se levanta rapidamente quando tiro uma foto e diz:
"Meus filhos não merecem ver este rosto véio morando nas ruas"

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Até você vir

 Até você vir  O vento era tudo Que ia, que vinha  Até você vir O tempo passava Eu o sentia, lânguido Agora tudo é brisa O tempo desliza Suaves rompantes Coram-me a face Cartas ridículas Cartas eróticas Seu corpo pálido Minha pele morena Seu corpo nu Minha alma despida Érica Alcântara

Sobre a prova de Deus

Setembro de 2004, sentada na varanda de casa reflito sobre Deus.  Mais ainda, penso nas instituições que garantem representá-Lo. Me calo. O Deus por muitas delas defendido é sempre condicionado, por-Tanto, há sempre um preço a pagar.  E o amor nestes termos perde a pureza original, tem preço com QrCode no final. A dura verdade, a verdade mais difícil de digerir é que no fundo-no-fundo não dá para provar a existência de Deus, porque as provas concretas o reduzem a condições limitadas à nossa própria existência. Reduzir o divino é tirar de Deus sua onipotência, é transformar o Criador na própria criatura. Érica Alcântara

Velório

Entrou no velório ainda tonto, com os olhos cheios d'água, o mesmo terno preto cheirando a flores e o lenço sempre a mão, tapando a boca que cheirava a pinga. Todas as vezes que João bebia, acabava velando alguém, chorando a morte dos outros, chorando a partida alheia como se fosse a sua.  - Você é parente?  - Não, eu só vim dizer... Até logo.  - Você sempre fala com os mortos?  - Quem é você?  - Eurico Breve, seu criado.  - Desculpe, eu não faço criado.  - O senhor não entendeu, só quero lhe prestar pêsames, vejo que estás muito triste. Já sei, era o amor de sua vida.  - Que vida?  - Entendo, o senhor quer ficar sozinho. De todo modo, lamento sua perda, tenha fé que Deus conforte o coração de toda sua família.  - De que família o senhor fala? João que não amava ninguém olhou para o rosto pálido e duro deitado à sua frente e todas aquelas flores cheirando a capim, sorriu e saiu. Pensava no senhor Breve que tagarelava muito e no rosto sem nome, envolto de flores que de certo  murcha